quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Eu sei, mas não devia | Marina Colasanti

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Marina Colasanti


14 comentários:

  1. belíssimo texto de Marina Colasanti. Mais do que uma simples leitura, recomendo a reflexão sobre estas palavras.

    ResponderExcluir
  2. Que texto maravilhoso! Verdadeiro e real sobre o que vivemos hoje, sobre as nossas correrias, e a falta de tempo para aproveitar o que a vida nos oferece de bom. Parabéns!

    ResponderExcluir
  3. só de ler o texto da uma vontade de mudar tudo isso, de deixar de se acostumar e começar a viver

    ResponderExcluir
  4. Mais importante não é notar que se acostuma com esses fatos do dia-a-dia, e sim tentar mudá-los. Constatar que fazemos isso é sábio, mas não tem utilidade na prática. Ótimo texto da senhorita Colasanti.

    ResponderExcluir
  5. Texto magnífico. Marina Colasanti sabe usar as palavras de uma maneira espetacular. Gostei muito;

    ResponderExcluir
  6. AMEIII, muito legal o texto.
    É a pura verdade do nosso tempo.
    Parabéns pelo blog.
    Deus te abençoe!
    beijo :*

    ResponderExcluir
  7. E o pior de tudo é que sentimos tanta falta disso que chegamos ficar doentes se nos tirarem desse mundo...
    Parabéns!!!

    ResponderExcluir
  8. "A gente se acostuma para poupar a vida"... Porém as vezes deixa vivê-la. Muito bom e elucidaditivo como tudo que posta.

    Bom dia

    ResponderExcluir
  9. Olá!!
    Adoooreiiii o blog...
    Parabéns!!!!
    bjs

    ResponderExcluir
  10. Que texto fantáááástico! Adorei!
    Vou colocar o blog junto aos que indico no meu. Que leitura boa!

    Caso tenha curiosidade... biografando.blogspot.com/

    abraço!

    ResponderExcluir
  11. Massa!!! Adorei o texto, a crítica está formidável, lemos e a cada frase nos sentimos mais dentro da realidade do texto, um bela obra e uma maravilhosa mensagem!!!

    ResponderExcluir
  12. dorei...
    Bom mesmo seria se todos pudessemle-lo também e meditar sobre cada paragrafo, cada verso, cada frase, cada palavra....
    muito bm mesmo

    ResponderExcluir

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...